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quinta-feira, 14 de julho de 2011

A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA

Cláudia Regina Brescancini
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Faculdade de Letras

1 Introdução

É fato facilmente observado em qualquer língua ou dialeto que seus falantes podem realizar certas escolhas entre dois ou mais sons, vocábulos ou estruturas. Alternâncias entre produções como po[x]ta, po[R]ta, po[h]ta, para porta, ou ainda entre o uso dos pronomes tu e você em tu vais pra onde?, você vai pra onde? e tu vai pra onde?, etc costumam ser identificadas de imediato por qualquer falante do português brasileiro, principalmente quando em contato com falantes provenientes de outras localidades brasileiras ou até mesmo de outros países onde se fala a língua portuguesa.
Também se nota que as escolhas podem não ser sempre as mesmas até para um mesmo falante, o qual, por exemplo, pode alternar produções como m[e]nino e m[i]nino ou ho[meâj], ho[miâ ] e ho[mi].
Tais possibilidades de escolha podem coexistir de modo estável em uma língua até mesmo por séculos. Pode acontecer também de uma delas passar a ser claramente preferida pelos falantes, caso em que se configura uma situação de mudança em progresso, prolongada até o momento em que as formas preteridas desaparecem e somente a forma mais usada permanece na língua ou dialeto. Quando esse estágio é atingido, diz-se que a mudança lingüística se completou e a regularidade é atingida (Labov,1972, 1980; Tarallo, 1986).
A idéia de que a variabilidade é uma característica inerente a qualquer sistema lingüístico conduz naturalmente à busca por uma explicação para o fato de o falante, ou grupo de falantes, efetuar uma determinada escolha e não outra. Uma justificativa satisfatória para as escolhas realizadas pelos falantes começou a ser delineada com o advento da chamada Sociolingüística, termo cunhado nos anos 50 para designar uma perspectiva de análise que reúne as idéias de lingüistas e sociológos com relação a questões sobre o lugar da língua na sociedade e, em particular, o contexto social da diversidade lingüística (Romaine, 2001). Pesquisas desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos por William Labov na década de 60, e que originaram a chamada Teoria da Variação Lingüística, ou Sociolingüística Quantitativa, foram decisivas na constituição dessa concepção.
Ficou claro a partir de então que as escolhas entre dois ou mais sons, palavras ou estruturas não ocorrem simplesmente por opção do falante, mas obedecem a um padrão sistemático regulado por regras especiais, conhecidas como regras variáveis, que expressam a covariação entre elementos do ambiente lingüístico e do contexto social.

2 O método de pesquisa em variação

A fim de que se possa definir a configuração de uma regra variável, é necessário percorrer basicamente seis etapas. Na primeira etapa, o pesquisador deve delimitar precisamente o fenômeno lingüístico variável, ou seja, definir a variável dependente, o que envolve o levantamento de todas as possibilidades de produção em variação. Se desejamos, por exemplo, examinar a produção "chiada" (1) de 's' em posição de trava de sílaba em língua portuguesa, em itens como mesmo, festa, poste, diremos que a variável dependente dessa pesquisa é a palatalização de /S/. As formas em variação, ou seja, as chamadas variantes, serão, além das produções "chiadas" - as fricativas palato-alveolares [S, Z] -, como em me[Z]mo e fe[S]ta, as sibilantes [s,z], como em me[z]mo e fe[s]ta, o apagamento, como em me mo, e a aspiração, como em me[ú]mo. Definida a variável dependente, o pesquisador está apto a iniciar a segunda etapa da pesquisa, na qual deve apontar as características internas (variáveis independentes lingüísticas) e externas (variáveis independentes sociais) ao sistema lingüístico que podem, por hipótese, estar influenciando a variável dependente. Deve basear-se para tanto nos dados da língua, na teoria lingüística e na própria estrutura social da comunidade de interesse.
Os possíveis valores de uma variável independente são representados pelos seus fatores, os quais devem obedecer a duas condições básicas: (a) ser mutuamente exclusivos, isto é, nenhum deles deve incluir totalmente ou parcialmente o outro, e (b) representar uma lista exaustiva de todas as possibilidades para seu grupo. No exemplo de pesquisa em questão, poderíamos supor, com base em estudos já realizados (cf. Brescancini 1996, 2002; Gryner e Macedo, 2000; Scherre e Macedo, 2000), que os contextos precedente e seguinte ao /S/, assim como também a localização de /S/ na palavra, podem influenciar a pronúncia palato-alveolar ("chiada"). Em tais casos, estipularíamos três variáveis lingüísticas independentes, a saber Contexto Precedente, Contexto Seguinte e Posição de /S/ no vocábulo. Os fatores que compõem tais variáveis poderiam ser organizados da seguinte forma:

1.Contexto Precedente

vogal coronal (2) (p[i]sta;t[e]xto;m[E]scla)

vogal labial (2) (s[u]sto;m[o]sca;b[]sque)

vogal dorsal (2) (p[a]sta).



2. Contexto Seguinte
consoante coronal (pis[t]a; des[d]e)
consoante labial (mes[m]o; cas[p]a)
consoante dorsal (mos[k]a; es[g]oto)

3. Posição na Palavra
Medial (pasta; mesmo)
Final (mês; rapaz)

Para a caracterização dos possíveis condicionadores sociais, as chamadas variáveis independentes sociais, é necessário que o pesquisador acesse informações referentes às fronteiras geográficas e sociais da comunidade de fala alvo da pesquisa, como presença de imigrantes, relevância da idade, classe social, sexo, escolaridade, existência de grupos étnicos que possam apresentar diferentes variantes de fala e variação estilística. Na pesquisa exemplificada, poderíamos propor controlar a informação referente ao sexo do falante, ao seu nível de escolaridade e à faixa etária a que pertence, o que se justificaria pela hipótese de que diferenças entre os sexos e/ou de instrução formal e/ou de idade poderiam estar influenciando o maior ou menor uso da pronúncia palatalizada de /S/. Os fatores que compõem tais variáveis poderiam ser organizados da seguinte forma:

4. Sexo

Masculino
Feminino

5. Escolaridade

ensino fundamental completo ou incompleto.

ensino médio completo ou incompleto




6. Idade

de 20 a 50 anos

mais de 50 anos
Variáveis independentes estabelecidas, inicia-se a terceira etapa. O pesquisador deve então procurar reunir os dados de fala real, base para a formulação da regra variável. Para tanto, pode recorrer a bancos de dados, onde se encontra geralmente grande quantidade de material já coletado, ou ainda pode o pesquisador decidir ir a campo e efetuar sua própria coleta de dados.
Dentre os bancos de dados sociolingüísticos no Brasil, destaca-se o Projeto VARSUL (3) (Variação Lingüística Urbana na Região Sul), que reúne amostras de fala representativas das variedades lingüísticas dos estados da região Sul do Brasil - Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
O banco é constituído de amostras de fala gravadas em fita cassete e em CD, e transcritas em material impresso, de habitantes nativos de 12 cidades da região Sul, 4 em cada estado, o que resulta em um acervo de 96 entrevistas por estado e 288 no total. Todas as entrevistas foram feitas em estilo não controlado e versam sobre a vida do habitante da cidade
Os informantes estão distribuídos por sexo, idade, nível de instrução e etnia. O Quadro 1 a seguir apresenta as cidades representadas no banco e os grupos étnicos culturalmente representativos de cada uma. É possível ao pesquisador acessar tais informações, bem como outras relativas à profissão, atividades sociais e de lazer, na ficha social de cada informante.

Quadro 1: Banco de Dados VARSUL - Regiões e Grupos Étnicos



A coleta dos dados referentes a tais localidades teve início em 1990 e deu-se até 1996. Após essa data, o banco foi acrescido ainda de outras amostras, referentes às localidades Ribeirão da Ilha (Florianópolis-SC; colonização açoriana) em 1996, São José do Norte-RS (colonização açoriana) em 2000, e Barra da Lagoa (Florianópolis-SC; colonização açoriana) em 2001, entre outras.
Outros bancos de dados no Brasil também disponíveis a pesquisadores podem ser citados. Para a descrição da variedade culta do português brasileiro, há o Projeto NURC (Norma Urbana Culta), que reúne dados de cinco capitais brasileiras - São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Recife - em três tipos de inquérito: (a) diálogo entre dois informantes, (b) elocução formal e (c) diálogo entre informante e documentador. Há ainda, entre outros, o Projeto PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), conhecido originalmente como Projeto Censo da Variação Língüística do Estado do Rio de Janeiro, com mais de vinte anos; o Projeto VALPB (Variação Lingüística da Paraíba), da UFPB (Universidade Federal da Paraíba); o Projeto BDS-Pampa (Banco de Dados Sociolingüísticos da Fronteira e da Campanha Sul-Rio-Grandense), da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas) e UCPEL (Universidade Católica de Pelotas) e BDSer (Banco de Dados da Serra Gaúcha), da UCS (Universidade de Caxias do Sul).
Tanto no caso de se recorrer a um banco de dados como no de realizar uma coleta, é necessário que se realize uma espécie de seleção dos indivíduos que farão parte da pesquisa, já que é obviamente impossível, por questões práticas, utilizar todas as entrevistas de um banco de dados ou gravar a fala de todas as pessoas de uma dada região de interesse.
O método mais comum em estudos de variação lingüística para tal fim é o aleatório estratificado. De acordo com esse procedimento, deve-se dividir a população de interesse em várias unidades compostas, cada uma delas, de indivíduos com as mesmas características sociais (Oliveira e Silva, 1992, p. 104). Essas unidades são conhecidas como células e devem ser preenchidas de forma aleatória, o que significa dizer que cada membro da comunidade de interesse tem a mesma chance de ser escolhido para fazer parte da pesquisa. Esse procedimento oferece a possibilidade de que os resultados obtidos para esse pequeno número de membros possam ser projetados à comunidade de fala como um todo.
Embora nunca estejamos inteiramente seguros de que uma amostra apresente de fato as características da população de onde se origina, o uso de amostras aleatórias oferece ao pesquisador a segurança de que seu estudo não está se restringindo a dados provenientes da fala de indivíduos pertencentes a um único segmento social, o que invalidaria a extensão das inferências feitas com base nos valores obtidos para a amostra da comunidade alvo.
A composição completa da amostra só será atingida quando da decisão sobre o número de informantes que representarão a comunidade de interesse. A técnica de amostragem utilizada sugere que se realize a multiplicação do número total de fatores de cada um dos parâmetros sociais escolhidos, um pelo outro. Desse modo, no caso exemplificado, temos os seguintes fatores para as variáveis sociais:


O que resulta na multiplicação 2 x 2 x 2 = 8. O produto obtido é entendido como o número de células que serão preenchidas por indivíduos selecionados aleatoriamente na região delimitada como de interesse para a pesquisa. Nota-se que cada célula traz informações específicas sobre qual a faixa etária, o sexo e o nível de escolaridade que o informante deve apresentar para poder preenchê-la. O Quadro 2 a seguir apresenta as oito possibilidades que constituem a amostra da pesquisa sobre a palatalização do /S/. Pode-se localizar geograficamente a comunidade de interesse na cidade do Rio de Janeiro (RJ), de Recife (PE) ou ainda em Florianópolis (SC), todas caracteristicamente produtoras da pronúncia em exame.

Quadro 2: Composição das Células Sociais - A Palatalização de /S/


Delimitada a amostra, deve-se então refletir sobre o número de informantes que ocupará cada célula. A situação ideal é a de cinco informantes por célula, o que, no caso em exame, significaria uma amostra final composta de 40 informantes (8 células x 5 informantes em cada célula = 40 informantes).
O próximo passo então deve ser em direção ao campo, na busca pelos indivíduos que se encaixam nas células, e na realização das entrevistas. Na quarta etapa, o pesquisador dedicar-se-á à transcrição e codificação das ocorrências coletadas. Inicialmente, deve planejar um sistema de codificação. Para cada fator de cada variável independente lingüística e social é atribuído um único código. É aconselhável que este
seja escolhido mnemonicamente sempre que possível, a fim de que o trabalho posterior de codificação seja facilitado. Desse modo, se estamos buscando códigos para os fatores da variável Sexo, por exemplo, poderíamos atribuir m para masculino e f para feminino. Se a variável for Contexto Seguinte, seria conveniente que o fator coronal fosse representado pela letra c, labial por l e dorsal por d.
As entrevistas que compõem a amostra delimitada para a pesquisa são ouvidas e extraem-se desse material as ocorrências de interesse no contexto em que surgem na fala dos informantes gravados. O que realmente constitui o "contexto da ocorrência" irá depender do tipo de variável em exame. Se ela é fonológica, pode envolver uma ou algumas palavras, mas se for sintática, a frase inteira poderá ser extraída ou até mesmo todo o parágrafo. Essa questão está diretamente relacionada à delimitação do que o pesquisador considera que deve ser registrado em sua análise e o que deve ser deixado de lado, decisão esta guiada certamente por princípios lingüísticos de análise.
Extrair as ocorrências também implica, para os estudos fonológicos, em transcrevê-las foneticamente, o que exige do pesquisador, como condição essencial, bons conhecimentos fonéticos, principalmente com relação à percepção auditiva dos sons da fala e ao domínio de um alfabeto fonético (4).
Feito o levantamento das ocorrências de interesse para a pesquisa, parte-se para a codificação de cada uma delas. No Quadro 3 a seguir, tem-se um exemplo de ocorrência codificada considerando-se o estudo sobre a palatalização de /S/. Nota-se que a codificação possui seis caracteres, cada um deles representativo de um dos fatores que compõem cada uma das seis variáveis independentes sociais e lingüísticas propostas.

Quadro 3: Codificação de Ocorrência - Palatalização de /S/




O primeiro símbolo refere-se a uma das variantes da variável dependente. No caso em questão, a palatalização de /S/ é definida como uma variável dependente composta por quatro variantes, palato-alveolares (1), alveolares (2), apagamento (3) e aspiração (4), sendo a palato-alveolar exemplificada no Quadro 3. O segundo símbolo, "d" , indica que o contexto precedente ao /S/ é uma vogal dorsal. O símbolo "c" seguinte informa que o contexto seguinte ao /S/ é uma consoante coronal e o "m", que /S/ encontra-se em posição medial. Os três últimos símbolos referem-se às características sociais do falante: "f", sexo feminino; "x", com ensino médio incompleto e "5", com idade entre 20 e 50 anos.
Independentemente de a variável ser fonológica ou sintática, o trabalho de levantamento de ocorrências em entrevistas e sua codificação consomem, no geral, muito tempo e exigem o máximo de atenção do pesquisador, visto que erros recorrentes podem comprometer o resultado final da pesquisa. Desse modo, uma ou mais revisões se fazem necessárias.
A etapa cinco trata da quantificação dos dados. A medição do papel dos fatores lingüísticos e sociais no condicionamento da variável dependente deve contar com o estabelecimento de um índice quantitativo. Isto significa dizer que a cada um dos fatores estabelecidos na pesquisa deve ser atribuído um valor numérico. Como esses valores variam de um fator para outro, é necessário que o pesquisador disponha de um instrumento que o auxilie a extrair inferências. Os programas que compõem o pacote computacional VARBRUL 2S (5) realizam exatamente essa tarefa.
Finalmente, o pesquisador atinge a etapa de interpretação dos resultados, o que envolve compreender e explicar os resultados numéricos oferecidos pelo programa. É importante observar que os valores numéricos relacionados aos fatores não respondem diretamente às perguntas que motivaram a pesquisa, mas funcionam apenas como uma espécie de direção para se chegar até elas. A teoria lingüística e o conhecimento da estrutura social da comunidade em exame, condutores iniciais da formulação das hipóteses de pesquisa, entram novamente em cena nesta etapa e atuam de modo decisivo na justificativa das tendências apresentadas pelos resultados numéricos.


REFERÊNCIAS

BRESCANCINI, C. R. A palatalização da fricativa alveolar não-morfêmica em posição de coda no português de influência açoriana do município de Florianópolis: uma abordagem não-linear. 1996. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

____. A fricativa palato-alveolar e sua complexidade: uma regra variável. 2002. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

GRYNER, H.; MACEDO, A. A pronúncia do -S pós-vocálico na região de Cordeiro-RJ. In: LABOV, W. Sociolinguistic Pattern. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

MOLLICA, M. C.; MARTELOTTA, M. E. (Org.). Análises lingüísticas: a contribuição de Alzira Macedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 26-51.

MOLLICA, M. C.; MARTELOTTA, M. E. (Org.). Análises lingüísticas: a contribuição de Alzira Macedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 52-64.

OLIVEIRA E SILVA, G. M. Coleta de Dados. In: MOLLICA, M. C. Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro: Programa de Apoio à Produção de Material Didático (PROMADI 1)- UFRJ, 1992. p. 101-114. (Cadernos Didáticos UFRJ).

ROMAINE, S. Language in Society. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2000.

______; MACEDO, A V. T. Variação e mudança: o caso da pronúncia do s pós-vocálico. In:

TARALLO, F. A pesquisa sociolingüística. 2. ed. São Paulo: Ática, 1986.


Disponível em: www.pucrs.br/edipucrs/online/pesquisa/pesquisa/pesquisaem letras.html. Acesso em: 10 jun.2010

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