Bem vindos ao blogue Sociofonemática

Este blogue foi criado para aqueles que têm interesse nas áreas de sociolinguística fonética e fonologia. Entre! Vamos participar! Dê a sua opinião.

quarta-feira, 12 de junho de 2013


                                                            Lucirene da Silva Carvalho[1]
É bastante comum ver os estudantes de letras se confundindo sobre o que é o quê, já que as duas áreas estudam os sons da fala. Afinal, qual é a diferença? E, finalmente, qual é a importância da fonética e da fonologia na linguística?
O estudo da fala é bem antigo, datando certamente mais de 2000 anos, e não é difícil de entender o porquê desse interesse. Tirando as pessoas que tenham tido algum problema que as impeça de falar, todo mundo usa algum idioma pra se comunicar, seja ele qual for. Através do idioma a gente expressa ideias, emoções e desejos, utilizando um sistema de “símbolos auditivos” produzidos pelos órgãos da fala, que são os sons.
Mas, os primeiros linguistas chegavam a algumas conclusões um tanto falhas em relação aos sons. Um exemplo foi o alemão Jacob Grimm que, além de escrever fábulas com o irmão mais novo, também era chegado aos estudos linguísticos. Ao descrever a estrutura fonética da palavra alemã Schrift – segundo ele, essa palavra tem oito sons e sete letras. Ele confundia o “f” com o “ph” do grego, e não percebia que “sch” representava um som só. Mas, ainda que ele tenha confundido a língua falada com a língua escrita (erro comum até hoje entre alguns alunos), ele foi responsável por uma admirável descrição das mudanças consonantais das línguas germânicas (hoje conhecida como “Lei de Grimm”) na sua Deutsche Grammatik (Gramática Alemã) de 1822.
A coisa começou a melhorar com o passar dos anos, e em 1876, Eduard Sievers (também alemão) publicou o livro Grundzüge der Lautphysiologie (Fundamentos da Fisiologia Vocal), dando origem à fonética como uma disciplina separada da fisiologia (onde estava até então) e dentro da linguística. “Ótimo”, você deve estar pensando, “então esse foi um livro importante para o surgimento da fonética. Mas, o que é fonética?”.
Lembra dos “símbolos auditivos” do primeiro parágrafo? Pois então, é importante notar que é um tipo específico de som que é interessante para os linguistas: os sons produzidos pelos órgãos da fala. Vamos chamar essa quantidade limitada de sons produzidos pelos órgãos da fala de meio fônico, e os sons individuais que aí estão de sons da fala. Pois bem, aqui vai a primeira definição: A fonética é o estudo do meio fônico ou, de maneira mais simples, a fonética é a área de estudo da linguística que busca descrever os sons da fala. Simples, não? Como Lyons menciona no livro Lingua(gem) e Linguística, existem três maneiras diferentes que a fonética pode descrever o som: Fonética Articulatória, que classifica os sons de acordo com a maneira que são produzidos; Fonética Acústica, que classifica os sons de acordo com as propriedades físicas dos sons produzidos pelos falantes; e Fonética Auditiva, que estuda como os sons da fala são percebidos e identificados pelo ouvido e o cérebro do ouvinte.
Uns 52 anos depois, foi organizado o Primeiro Congresso Internacional de Linguistas, realizado em Haia (na Holanda), onde se sentiu a importância de marcar uma diferença entre uma ciência que tratasse dos sons da fala (a Fonética) e outra que tratasse dos sons da língua — e é aí que temos a Fonologia. 
A diferença entre os dois fica clara na explicação do artigo sobre fonética, disponível no livro Linguagem e Linguística: Uma Introdução, de Lyons.
A principal preocupação da Fonética é descrever os sons da fala. Por exemplo, as afirmações típicas desta ciência é dizer que o som [b] é articulado com uma corrente de ar pulmonar, egressiva, com vibração das cordas vocais, com uma obstrução do fluxo de ar seguida de uma explosão; (…) Por sua vez, a Fonologia busca interpretar os resultados obtidos por meio da descrição (fonética) dos sons da fala, em função dos sistemas de sons das línguas e dos modelos teóricos disponíveis. Faz parte do trabalho fonológico explicar o porquê de os falantes de alguns dialetos do português do Brasil considerarem como sendo “o mesmo som” as consoantes iniciais das palavras tapa e tia ([t] e [tʃ] – “tchê”, respectivamente), muito embora elas sejam bastante diferentes, articulatória, acústica e perceptualmente.
Resumindo: a fonética estuda as propriedades do sons [l], [ɾ] (o “r” de “cara”) e [ɺ] (o “r” japonês) — onde a língua bate, se as cordas vocais vibram e daí por diante (sem aplicar isso necessariamente a língua alguma). Já a fonologia estuda o fato de que os falantes de japonês costumam ouvir esses sons como se fosse “a mesma coisa” ([ɑligɑtoː] e [ɑɾigɑtoː] não são palavras diferentes), enquanto os falantes de português entendem que o [l] e o [ɾ] são sons distintos (afinal, “calo” e “caro” não são a mesma coisa) e o [ɺ] acaba sendo entendido como um dos dois sons (mas dificilmente como algo intermediário).
Agora que você sabe a diferença entre fonética e fonologia, você já pode estudar mais a fundo a teoria por trás de cada uma, e se familiarizar com palavras e expressões como “alofone”, “par mínimo” e “oclusiva surda velar”.

Referência

Mattoso Câmara Jr., Joaquim. A História da Linguística. 6.ed. Rio de janeiro: Vozes, 1975. (Capítulo X)

Sapir, Edward. Language: An Introduction to the Study of Speech. Gutemberg Project. (Capítulo II)

Onishi, Masao. A Grand Dictionary of Phonetics. The Phonetic Society of Japan. Tokyo, 1981. (Grimm’s Law)

Lyons, John. Linguagem e Linguística: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. (Capítulo 3).

Massini-Cagliari, Gladis; Cagliari, Luiz Carlos. Fonética. In: Introdução à Linguística: Domínios e Fronteiras. São Paulo: Cortez Editora, 2006.

Mori, Angel Corbera. Fonologia. In: Introdução à Linguística: Domínios e Fronteiras. Cortez Editora. São Paulo, 2006.





[1] Ideias Resumidas de alguns textos, como mencionado nas referências, para fins didáticos

Resenha "A Pesquisa Sociolinguística"

O livro A pesquisa sociolingüística está divido em cinco capítulos, a saber: “A relação entre língua e sociedade”, “O fato sociolingüístico”, “A variação lingüística: primeira instância”, “A variação lingüística: segunda instância”, “Variação e mudança lingüística.” Após estes, vem às conclusões, o vocabulário crítico e por fim, a bibliografia comentada.

No primeiro capítulo, o autor propõe o objetivo do livro: as possíveis maneiras de combater o "caos" lingüístico que é associado a um campo de batalha. Também propõe um ponto de partida para a análise do pesquisador – a relação entre língua e sociedade. E por fim, delimita o modelo de analise abordado neste livro: à teoria da variação lingüística – modelo teórico-metodológico – que tem como objeto de estudo o caos lingüístico.
Fernando Tarallo discute a questão da relação entre língua e sociedade. O autor utiliza a definição de língua numa perspectiva de que consiste em percebê-la como fato social, como um sistema convencional adquirido pelos indivíduos durante o convívio social, e, portanto, está sujeito a variações de ordem fonológica, morfossintática, estilística e/ou semântica.
No segundo capítulo “O fato sociolinguístico”, o autor propõe uma metodologia de coleta de dados para que o pesquisador possa apreender a constituir o seu objeto de análise; além de discutir a relação entre teoria, método e objeto de estudo.
De acordo com o autor, esse modelo teórico-metodológico tem como precursor William Labov. Seu modelo analítico é denominado por alguns estudiosos de sociolinguística quantitativa. Conforme Tarallo, esse modelo teórico metodológico parte da identificação do objeto, o fato linguístico – a língua falada. No que se refere à teoria, consiste na investigação científica sobre a língua, servindo como suporte para definir os procedimentos metodológicos a serem empregados durante o estudo.
Com relação à coleta de dados, o autor problematiza a questão de se estudar a língua em situações naturais de comunicação, o pesquisador teria, então, grandes dificuldades para não interferir nessa naturalidade desejada. Então, o autor propõe que neste processo de coleta de material, o pesquisador não deve participar diretamente, dessa maneira não será prejudicada a naturalidade da situação de comunicação, exercendo, assim, o papel de pesquisador-observador.
No entanto, Tarallo nos apresenta que a partir desse papel se estabelece um paradoxo, o pesquisador necessita participar diretamente da interação, para que assim possa controlar os tópicos de conversa, estimulando as realizações da variável linguística que está interessado.
Portanto, surge um problema com relação à orientação teórico-metodológica do pesquisador, que necessita de dados suficientes para seu estudo, contando apenas com os dados coletados através de sua interação com o entrevistado, não podendo interferir na naturalidade da situação de comunicação.
O autor apresenta, ainda, “O método de entrevista sociolinguística: a coleta de narrativas de experiência pessoal”, que consiste na seleção dos falantes, organizados em módulos: classe social, faixa etária, etnia, sexo, nível de escolaridade e entrevistados seguindo um roteiro de perguntas com o acompanhamento de um gravador, sem que este seja visto como um elemento de “intimidação” pelo falante.
Ainda segundo Tarallo, seria necessário, ainda, que o sociolinguista tenha o cuidado em não pronunciar o termo língua, além de ter que adequar o seu falar ao do grupo entrevistado.
No terceiro capítulo “Variação Linguística: primeira instância” divide-se em cinco tópicos. Em O envelope de variação, Tarallo apresenta o envelope como o elencamento das variantes adversárias, exemplificando-as como as adversárias ([S]) e vazio. Utiliza-se mais uma vez a proposta de Labov na concepção e na aquisição do modelo sociolingüístico em ao mesmo tempo ser sincrônico e diacrônico. E o duplo objetivo da comparação de variantes. Em As armas e as artimanhas das variantes: fatores condicionadores, o autor discorre sobre as hipóteses que são dadas ao contexto ou fatores que influenciam a variável, ou seja, os contextos são considerados como os fatores condicionantes, que, decerto, influenciam nas variantes. Em A operacionalização do modelo, quatro grupos e fatores possíveis são usados como exemplo da variável do plural do sintagma nominal. No tópico, O encaixamento lingüístico da variável, o encaixamento deve ser alcançado como a motivação das hipóteses dos grupos de fatores. E o último tópico Os fatores extralingüísticos, o autor diz que tudo que convém de pretexto para variável poder ser proeminente para o exame dos dados. E por conta disso, os fatores precisam partir da percepção do pesquisador.
No quarto capítulo “A variação linguística: segunda instância”, o autor discute a noção de estereótipos e dos marcadores e indicadores sociolinguísticos; bem como, a questão sobre variação e normalização linguística; discute ainda, o papel desempenhado pela língua e pelos meios de comunicação de massa; e, por fim, os parâmetros extralinguísticos: classe social, faixa, etária, sexo, etnia e estilo.
O autor aborda neste capítulo, a ideia de avaliação das variáveis sociolinguísticas do falante de uma maneira geral, ao contrário do abordado no capítulo anterior que considerou a visão do pesquisador. Partindo de pesquisas feitas e do conhecimento já adquirido sobre a comunidade, o pesquisador intui o papel atribuído às variantes pela comunidade de falantes. Então, o tratamento estatístico dos dados indicará que alguns grupos de fatores são responsáveis pela realização de uma variante, enquanto que outros grupos não demonstram qualquer efetividade na aplicação da regra variável.
O autor afirma que o pesquisador pode submeter seus informantes a uma situação, ou seja, os testes sociolingüísticos que tem o intuito à avaliação da variante pelos informantes. O autor considera a língua falada como heterogênea e variável, contudo, essa variabilidade é passível de sistematização, pois esta modalidade da língua é um sistema variável de regras. Esse sistema de variação deve corresponder às tentativas de regularização e normalização. A língua escrita é proveniente da regularização, é ensinada nas escolas tendo como “suporte” a norma padrão portuguesa, assegurando a unidade da língua. Com isso, o autor propõe a investigação de fontes de dados que tenham como objetivo a unificação da língua nacional, como por exemplo, os meios de comunicação de massa; o autor ainda afirma que, embora esses meios priorizem a norma culta, possuem traços variáveis de informalidade, característicos da fala.
O autor conclui este capítulo propondo uma ampliação do conceito de gramática, que segundo ele, deveria abranger a forma (estrutura) e a substância (uso) da língua, levando em consideração a noção do uso lingüístico e a caracterização da comunidade de fala através de seus traços referenciais e socioestilísticos.
No quinto capítulo "Variação e mudança lingüística" está dividido em quatro tópicos: “Contemporização ou morte?”;” A faixa etária: o tempo aparente”; “O tempo real: fontes históricas”; “A viagem de ida e de volta: do presente ao passado e de volta ao presente”. No primeiro tópico, o autor faz a relação entre variação e mudança. E a análise de variantes pode tomar duas direções, a variação estável ou a mudança em progresso. Ele também fala sobre a estrutura da língua, esta só será entendida a partir do seu processo histórico de sua configuração. Já no segundo tópico, o autor conceitua o tempo aparente como um recorte transversal da amostra sincrônica em função da faixa etária dos informantes. Para exemplificar o autor se utiliza dos resultados de Cedergren (1970) e de Peter Trudgill (1971). No terceiro tópico, a partir de fonte histórica como cartas pessoais, Atlas lingüísticos, entre outros, é possível, para o sociolinguísta, analisar as variantes de uma determinada época. Para isto, é necessário considerar cinco dimensões: fatores condicionantes, encaixamento, avaliação, transição e a implementação. No quarto tópico, o autor se vale do exemplo das orações relativas, tendo uma variante padrão e duas não-padrão, com o objetivo de colher informações históricas sobre cada variante num dado momento sincrônico.
No sexto capítulo “Conclusões”, Tarallo faz uma breve síntese dos capítulos abordados no livro e retoma a questão da heterogeneidade, demonstrando que é possível sistematizar a língua falada, mesmo com a coexistência de variantes em um mesmo período histórico. Dessa forma, o autor critica a idéia de homogeneidade da língua. Destina o livro àquelas pessoas que ainda não reconheceram que a lingüística se vale de pressupostos teóricos e metodológicos. Além de ressaltar que o papel do pesquisador é "investigar aquilo que varia e como a variação pode ser sistematizada".
Apresentando ainda, o sétimo capítulo, “Vocabulário crítico”, onde o autor nos traz alguns conceitos utilizados ao longo do livro.
E, por fim, o oitavo capítulo, “Bibliografia comentada”, está dividida em quatro partes. Na primeira apresenta os livros didáticos sobre a sociolinguística existentes no mercado; na segunda, algumas antologias de textos clássicos; na terceira, apresenta as obras de William Labov; e na quarta parte, o autor faz algumas sugestões de leituras complementares.
O livro A pesquisa Sociolinguística, de Fernando Tarallo, é imprescindível aos estudantes e profissionais da área da linguística que tem a intenção de se tornar um pesquisador e a todos que, de um modo geral, se utilizam da linguagem.


Fonte: TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática. 7 ed. 2001.

ENTREVISTA COM DERMEVAL DA HORA


ENTREVISTA COM DERMEVAL DA HORA
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGB0K6v7Gt1R-4pfpckBDBQajJQJL0qwDj1XPTNRh5Jz8GCdGoMuqiNQdujuifSD_lvYNPkUQMlu-rEVyGDf__vMUyeZANKZuhFXGmTkSZBxUAgedAhl1LgslwoHpKNIKmtlw0SmHP5UQq/s320/DSC02131.JPG


Por Marta Furtado


Acreditando que entre os objetivos do Fanatics for Phonetics está o fato de promover discussões sobre Fonética e Fonologia, convidamos o professor Dr. Dermeval da Hora para uma entrevista. Nessa oportunidade, perguntamos sobre a trajetória do professor no campo da linguística, considerando a importância de suas pesquisas e suas opiniões sobre os estudos fonéticos e fonológicos no Brasil.


O professor Dermeval da Hora é doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1990). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Livre de Amsterdam. É professor da Universidade Federal da Paraíba e foi o principal articulador da criação do Programa de Pós-Graduação em Lingüística (PROLING), tendo sido o seu primeiro coordenador.Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nas áreas de Fonologia, Sociolinguística Variacionista e Aquisição da Linguagem. É bolsista de Produtividade do CNPq, foi presidente da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN) e é delegado da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina (ALFAL) no Brasil. Nessa Associação, coordena o Projeto 19 - Fonologia: teoria e análise. Atualmente realiza Estágio Sênior na Vrije Universiteit - Amsterdam, desenvolvendo projeto relativo a estudo do estilo associado à variação.




Quando você decidiu voltar suas pesquisas para as áreas de Fonologia, Sociolinguística Variacionista e Aquisição da Linguagem?


Minha história com a Fonologia e também com a Sociolinguística começou em 1986, quando fui fazer meu Doutorado na PUCRS. Conhecia pouco de Sociolinguística Variacionista e cheguei acreditando, como vejo os alunos que iniciam hoje, que podia escolher um tema sem delimitá-lo o suficiente, a fim de permitir uma análise probabilística. A partir dos cursos que fiz com a Profa. Leci Barbisan, lendo Labov, é que comecei a perceber o que tinha que fazer. A Leci era uma grande admiradora de Labov e conseguiu contagiar-me. Associado a isso, surgiu a oportunidade de fazer uma disciplina com a Profa. Leda Bisol, que sempre trabalhou com Fonologia. Aí foi a gota d’água. Seu jeito de ensinar, de passar o conteúdo, tudo contribuiu para interessar-me. Atrelado ao meu interesse pela Sociolinguística acrescentei a Fonologia. E aí é o que faço até hoje.


Quais foram as principais pesquisas que você já desenvolveu nessas áreas?

Meu maior trabalho e o que considero mais significativo foi o Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba – VALPB. Iniciado em 1993, esse Projeto rendeu grandes frutos. Muitas dissertações, teses, artigos, apresentações em eventos são resultantes dessa iniciativa. Inúmeros alunos passaram pelo VALPB. Hoje, muitos deles são colegas, atuando em diferentes universidades brasileiras. São pesquisadores como eu. E, muitos deles, voltados para Sociolinguística e Fonologia. O trabalho, assim, não foi em vão.


Quais foram os trabalhos mais significativos na área de Fonologia no Brasil?

Fiz inúmeros trabalhos de Fonologia. Utilizando os dados do VALPB, pesquisamos vários processos. Gosto dos trabalhos sobre a coda no Português. A partir deles, e comparando os resultados com outros do Brasil, podemos chegar a conclusões bem interessantes. Também temos investido nas vogais. Até participamos de um Projeto nacional sobre elas. Enfim, temos muita coisa já publicada nessa área, todas com um pé na variação.


Na Universidade Estadual da Paraíba, para o curso de Letras com habilitação em Língua Inglesa, a Fonética é uma disciplina independente. Por que isso não acontece com a habilitação em Língua Vernácula e qual é a sua opinião sobre isso?

Quando cheguei na UFPB em 1992, tínhamos uma disciplina de Linguística II. Nela, inseríamos o conteúdo de Fonética e Fonologia. Quando começamos a trabalhar a reestruturação do Curso de Letras Vernáculas, inserimos a disciplina Fonologia do Português. Ela já está sendo ministrada. Como tenho estado afastado de minhas atividades na graduação por algum tempo, desconheço como está sendo conduzido o curso. Difícil trabalhar com Fonologia sem trabalhar com Fonética. Acredito que as duas estejam como foco de atenção na disciplina. Defendo, entretanto, que, para a licenciatura, a Fonologia tem informações mais interessantes. É interessante trabalhar o sistema fonológico e ver como ele se reflete no uso. De posse desse conhecimento podemos atuar em questões relacionadas às habilidades ler e escrever. É inegável como essas coisas estão associadas.


Qual é a análise que você faz sobre as pesquisas em Fonética e Fonologia no Brasil? Há muitos ou poucos pesquisadores atuando nessas áreas? Qual é o foco das pesquisas em andamento?


Se considerarmos as disciplinas que constituem o núcleo “hard” da Linguística, acho que elas todas precisam ter mais adeptos. A Fonologia é uma que ainda é pouco estudada. Há grupos fortes em algumas instituições, mas, na maior parte do Brasil, não temos representantes. O mesmo acontece com a Fonética. O grupo do Rio Grande do Sul tem desenvolvido pesquisas com base de análise na Teoria da Otimalidade. Outras tendências existem no Brasil, mas são bem incipientes. Aqui na UFPB, seguimos a proposta do grupo do Rio Grande do Sul, mas são poucos os colegas que trabalham nessa perspectiva. Sempre me pergunto por que a resistência aos aspectos estruturais da língua. A situação da morfologia, por exemplo, chega a ser pior do que a da Fonologia. Se tentar levantar quantas pessoas trabalham com Morfologia no Brasil, com certeza poderá contar com os dedos das mãos. Leda Bisol foi uma grande disseminadora da Fonologia no Brasil, a ela devemos muito do que está sendo feito.
  
Os estudos em Fonologia estão intrinsecamente ligados ao fenômeno da variação linguística. Como você avalia o espaço da variação linguística na sala de aula e no livro didático de ensino fundamental?


Tenho participado de vários eventos falando sobre variação. Acho ótimo sempre que tenho essa oportunidade. E sempre que a tenho procuro associar a variação à Fonologia, mostrando como esse conhecimento pode contribuir para que entendamos o que acontece com nossos alunos em todos os níveis de ensino. Infelizmente, a maioria dos professores que atua no nível fundamental desconhece essa relação e aí fica difícil lidar com certas questões que seriam facilmente resolvidas se a conhecesse. Alguns livros didáticos tratam essa questão de forma muito superficial. Com isso, os alunos acabam sendo prejudicados. Quando trabalho com Fonologia com professores do ensino fundamental, e procuro associá-la a aspectos da leitura e da escrita, é impressionante como cresce o interesse das pessoas. Parece que estão vendo aquilo pela primeira vez. É gratificante ajudar. O problema é a continuidade, que nem sempre acontece.



Considerando a possibilidade de falar aos estudantes de Letras, o que você pode dizer aos alunos que desejam aprofundar seus estudos em Fonética e Fonologia?

Tenho feito sempre isso. Processos aliados a questões de Fonética e Fonológica são os mais fáceis de serem percebidos. Com isso, somos instigados a buscar soluções. Sempre enfatizo a beleza do que é perceber como as coisas funcionam na língua. Nada que dizemos é por acaso, e não o dizemos como queremos. Há coerência em tudo. Existe um todo articulado, em que unidades menores se unem para constituir unidades maiores. Daí a importância de se conhecer algo sobre os sons e seus sistemas. Não consigo entender como algumas pessoas acham que conseguem fazer análise de discurso, de texto sem conhecer a estrutura básica da língua. Hoje estou começando uma nova fase de pesquisa. Estou estudando o estilo associado à variação, ou a variação associada ao estilo. Ao observar as diferenças de estilo, percebo que tudo está atrelado. O discurso faz parte do estilo, mas ele só é plenamente compreendido se tivermos conhecimento do que subjaz. Para os alunos que iniciam, sempre coloco a necessidade de termos uma compreensão ampla dos estudos linguísticos. Só a partir dela é que poderemos definir o que exatamente queremos. Trabalhar os sons, procurando entendê-los em sua produção e também na sua representação mental é algo desafiador, mas que é gratificante para o investigador.


sábado, 25 de setembro de 2010

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Resumo sobre o aparelho fonador e suas correspondências articulatórias

Aniela Improta França

Uma das habilidades lingüísticas mais complexas e admiráveis é a percepção e produção dos sons da língua nativa. Não nos damos conta disso a não ser quando verificamos as discrepâncias na fala de estrangeiros com variados níveis de proficiência. Geralmente, mesmo quando a sintaxe é impecável, a pronúncia raramente é perfeita. Fica claro que como nativos conhecemos uma grande quantidade de propriedades sonoras e de distinções significativas entre sons de nossa língua e todas essas informações são muito difícies de adquirir quando se fala uma segunda língua.
Dois ramos da lingüística se ocupam especificamente dos sons de língua: a fonética e a fonologia. A fonética estuda a natureza dos sons como realidade física e como eles são produzidos e percebidos. Sua unidade de sonora é o fone. Esta ciência investiga os eventos físicos que ocorrem desde que o som é articulado e sai pela boca do falante até que ele chegue ao ouvido do ouvinte. A fonética desenvolve métodos para a descrição, classificação e transcrição de todos os sons de fala de todas as línguas naturais.. Ela faz isso em três especialidades que enfocam aspectos específicos do som:
1. Fonética Articulatória: estuda os sons do ponto de vista fisiológico e articulatório.
2. Fonética Auditiva: estuda a percepção sonora da fala.
3. Fonética acústica: estuda as características físicas da propagação do som depois que ele sai da boca do falante.
Depois que o som chega aos ouvidos, a mente tem de pareá-lo com uma unidade de
representação de som, ou fonema. Este pareamento entre o som e as representações mentais é objeto de estudo da fonologia.
Temos estocados na mente um número menor de fonemas do que o número de fones que
existem na totalidade das línguas naturais. Ocorre que as representações mentais que introjetamos durante o período crítico da aquisição de linguagem são as correspondentes aos sons selecionados por nossa língua mãe. Estes fonemas representam sons que perfazem apenas um subconjunto da totalidade de sons da fala.
As informações sonoras contidas nos dados primários vão acionar na mente do bebê a
formação do sistema sonoro da sua língua-mãe, que conterá todos os sons distintivos, além de especificações estruturais para licenciar as combinações possíveis entre estes sons. Depois do período de aquisição estamos aptos a pronunciar qualquer palavra dentro deste sistema incluindo palavras novas e até não palavras.
Em relação à percepção do som, quando recebemos um input fonético é possível transformálo em representação abstrata (fonemas) que se combinarão para depois atingir pareamento semântico.Em relação à produção do som, quando estruturamos na mente as cadeias de fonemas, seus traços abstratos servirão de instruções para acionar os órgãos da fala que vão produzir sons no mundo físico.
Como pudemos ver a fonética e a fonologia tem uma interelação estreita onde o utput de uma é input da outra.
É interessante notar que os órgãos físicos envolvidos na produção de fala não dão para ela dedicação exclusiva nem mesmo função principal. Os órgãos que em conjunto formam o Aparelho Fonador têm como funções principais a respiração, a deglutição, a mastigação etc, mas também se prestam para executar a fonação.
Para fins didáticos convencionou-se dividir o Aparelho Fonador em três sistemas: o
respiratório ou subglotal, o fonatório ou laringeal, e o articulatório ou supralaringeal. O sistema respiratório ou subglotal consiste nos pulmões, músculos pulmonares, tubos brônquios e traquéia. Além de produzir a respiração, este sistema tem a função secundária de fazer um fole que dá início à corrente de ar que se move através dos bronquios e traquéia, levando o ar para a laringe.
O sistema fonatório é constituído pela laringe, um anel cartilaginoso situado na parte superior da traquéia. Dentro da laringe encontra-se um órgão fundamental à fonação: as cordas ou pregas vocais. As pregas vocais são como dois lábios esticados horizontalmente ao longo da abertura central da laringe, no sentido frente-trás. Elas são altamente flexíveis porque são feitas de um tecido elástico, chamado ligamento, e do músculo estriado tireocricóide. Na frente, as cordas estão presas a tireóide (que são visíveis em homens como o nó no pescoço conhecido com pomo-de-adão). Atrás, as cordas vocais são ligadas às cartilagens aritenóides.As cartilagens aritenóides são multiarticuladas e são as responsáveis por uma mobilização sutil das pregas vocais que resultam em diferenças de vibração, que por sua vez ressoa de diferentes formas ao seguirem o caminho de expulsão do ar pelo trato vocal. Em repouso, as duas pregas vocais são separadas uma da outra. Quando elas estão separadas exibem um espaço entre elas chamado de glote. Com estado da glote aberto o ar passa livremente e as cordas vocais não vibram. Mas em função da mobilidade das aritenóidesas, as cordas vocais podem se aproximar. Quando isso acontece o estado da glote é fechado, e o ar tem de forçar sua passagem fazendo as cordas vibrarem. Para proteger toda esta estrutura complexa, acima das pregas vocais há uma dobra de tecido muscular estriado formando uma válvula localizada acima da laringe e antes do final da língua na garganta. É a epiglote. Ela evita que durante a alimentação entre comida ou líquido pela laringe e traquéia e acabe chegando até aos pulmões, onde estes corpos estranhos causam sérios danos à saúde.
O Sistema Articulatório ou supralaringeal é formado pelas cavidades ou caixas de ressonância oral e nasal e pelos órgãos faringe, língua, palato (dividido em crista alveolar palato duro medial e palato duro final, palato mole e úvula), nariz, dentes e lábios. Mobilização de estruturas neste sistema cria constrições na caixa de ressonância que modifica o fluxo do ar e consequentemente o som resultante.
O caminho para respiração começa no sistema respiratório onde o ar é impelido dospulmões em direção para fora do corpo (corrente de ar egressiva). Depois de passar pelos bronquios, o ar chega ao sistema fonatório onde o estado da glote vai determinar o vozeamento do som: estado da glote aberto deixa o ar passar livremente sem fazer vibrar as cordas vocais, resultando em um ruído de consoante desvozeada como em [p t k f s ∫ t∫ x h]. Quando o estado da glote é fechado as pregas vocais estão unidas e o ar as faz vibrar. O som então é vozeado como em [b,d,g, v,z, ].Depois que o ar passa para o sistema suprafaringeal temos muitos articuladores ativos, estruturas que se movem em direção a outros articuladores passivos com os quais estabelecem articulação.


Bibliografia
1. Botelho, M. A.- Iniciação à fonética 5ª edição UFRJ, 1998 Subreitoria de graduação e corpo
discente
2. Cagliari, L.C. - Análise Fonológica: Introdução a Teoria e Prática Mercado de Letras, 2002
3. Callou, D e Leite, Y. – Iniciação à fonetica e a fonologia – 8ª edição Jorge zahar editor 289, 1990.
4. Chomsky, N.; Halle, M. - Sound Pattern of English - Harper and Row, 1968
5. Silva, TC Fonética e Fonologia do Português – Editora Contexto 273p 2002

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA

Cláudia Regina Brescancini
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Faculdade de Letras

1 Introdução

É fato facilmente observado em qualquer língua ou dialeto que seus falantes podem realizar certas escolhas entre dois ou mais sons, vocábulos ou estruturas. Alternâncias entre produções como po[x]ta, po[R]ta, po[h]ta, para porta, ou ainda entre o uso dos pronomes tu e você em tu vais pra onde?, você vai pra onde? e tu vai pra onde?, etc costumam ser identificadas de imediato por qualquer falante do português brasileiro, principalmente quando em contato com falantes provenientes de outras localidades brasileiras ou até mesmo de outros países onde se fala a língua portuguesa.
Também se nota que as escolhas podem não ser sempre as mesmas até para um mesmo falante, o qual, por exemplo, pode alternar produções como m[e]nino e m[i]nino ou ho[meâj], ho[miâ ] e ho[mi].
Tais possibilidades de escolha podem coexistir de modo estável em uma língua até mesmo por séculos. Pode acontecer também de uma delas passar a ser claramente preferida pelos falantes, caso em que se configura uma situação de mudança em progresso, prolongada até o momento em que as formas preteridas desaparecem e somente a forma mais usada permanece na língua ou dialeto. Quando esse estágio é atingido, diz-se que a mudança lingüística se completou e a regularidade é atingida (Labov,1972, 1980; Tarallo, 1986).
A idéia de que a variabilidade é uma característica inerente a qualquer sistema lingüístico conduz naturalmente à busca por uma explicação para o fato de o falante, ou grupo de falantes, efetuar uma determinada escolha e não outra. Uma justificativa satisfatória para as escolhas realizadas pelos falantes começou a ser delineada com o advento da chamada Sociolingüística, termo cunhado nos anos 50 para designar uma perspectiva de análise que reúne as idéias de lingüistas e sociológos com relação a questões sobre o lugar da língua na sociedade e, em particular, o contexto social da diversidade lingüística (Romaine, 2001). Pesquisas desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos por William Labov na década de 60, e que originaram a chamada Teoria da Variação Lingüística, ou Sociolingüística Quantitativa, foram decisivas na constituição dessa concepção.
Ficou claro a partir de então que as escolhas entre dois ou mais sons, palavras ou estruturas não ocorrem simplesmente por opção do falante, mas obedecem a um padrão sistemático regulado por regras especiais, conhecidas como regras variáveis, que expressam a covariação entre elementos do ambiente lingüístico e do contexto social.

2 O método de pesquisa em variação

A fim de que se possa definir a configuração de uma regra variável, é necessário percorrer basicamente seis etapas. Na primeira etapa, o pesquisador deve delimitar precisamente o fenômeno lingüístico variável, ou seja, definir a variável dependente, o que envolve o levantamento de todas as possibilidades de produção em variação. Se desejamos, por exemplo, examinar a produção "chiada" (1) de 's' em posição de trava de sílaba em língua portuguesa, em itens como mesmo, festa, poste, diremos que a variável dependente dessa pesquisa é a palatalização de /S/. As formas em variação, ou seja, as chamadas variantes, serão, além das produções "chiadas" - as fricativas palato-alveolares [S, Z] -, como em me[Z]mo e fe[S]ta, as sibilantes [s,z], como em me[z]mo e fe[s]ta, o apagamento, como em me mo, e a aspiração, como em me[ú]mo. Definida a variável dependente, o pesquisador está apto a iniciar a segunda etapa da pesquisa, na qual deve apontar as características internas (variáveis independentes lingüísticas) e externas (variáveis independentes sociais) ao sistema lingüístico que podem, por hipótese, estar influenciando a variável dependente. Deve basear-se para tanto nos dados da língua, na teoria lingüística e na própria estrutura social da comunidade de interesse.
Os possíveis valores de uma variável independente são representados pelos seus fatores, os quais devem obedecer a duas condições básicas: (a) ser mutuamente exclusivos, isto é, nenhum deles deve incluir totalmente ou parcialmente o outro, e (b) representar uma lista exaustiva de todas as possibilidades para seu grupo. No exemplo de pesquisa em questão, poderíamos supor, com base em estudos já realizados (cf. Brescancini 1996, 2002; Gryner e Macedo, 2000; Scherre e Macedo, 2000), que os contextos precedente e seguinte ao /S/, assim como também a localização de /S/ na palavra, podem influenciar a pronúncia palato-alveolar ("chiada"). Em tais casos, estipularíamos três variáveis lingüísticas independentes, a saber Contexto Precedente, Contexto Seguinte e Posição de /S/ no vocábulo. Os fatores que compõem tais variáveis poderiam ser organizados da seguinte forma:

1.Contexto Precedente

vogal coronal (2) (p[i]sta;t[e]xto;m[E]scla)

vogal labial (2) (s[u]sto;m[o]sca;b[]sque)

vogal dorsal (2) (p[a]sta).



2. Contexto Seguinte
consoante coronal (pis[t]a; des[d]e)
consoante labial (mes[m]o; cas[p]a)
consoante dorsal (mos[k]a; es[g]oto)

3. Posição na Palavra
Medial (pasta; mesmo)
Final (mês; rapaz)

Para a caracterização dos possíveis condicionadores sociais, as chamadas variáveis independentes sociais, é necessário que o pesquisador acesse informações referentes às fronteiras geográficas e sociais da comunidade de fala alvo da pesquisa, como presença de imigrantes, relevância da idade, classe social, sexo, escolaridade, existência de grupos étnicos que possam apresentar diferentes variantes de fala e variação estilística. Na pesquisa exemplificada, poderíamos propor controlar a informação referente ao sexo do falante, ao seu nível de escolaridade e à faixa etária a que pertence, o que se justificaria pela hipótese de que diferenças entre os sexos e/ou de instrução formal e/ou de idade poderiam estar influenciando o maior ou menor uso da pronúncia palatalizada de /S/. Os fatores que compõem tais variáveis poderiam ser organizados da seguinte forma:

4. Sexo

Masculino
Feminino

5. Escolaridade

ensino fundamental completo ou incompleto.

ensino médio completo ou incompleto




6. Idade

de 20 a 50 anos

mais de 50 anos
Variáveis independentes estabelecidas, inicia-se a terceira etapa. O pesquisador deve então procurar reunir os dados de fala real, base para a formulação da regra variável. Para tanto, pode recorrer a bancos de dados, onde se encontra geralmente grande quantidade de material já coletado, ou ainda pode o pesquisador decidir ir a campo e efetuar sua própria coleta de dados.
Dentre os bancos de dados sociolingüísticos no Brasil, destaca-se o Projeto VARSUL (3) (Variação Lingüística Urbana na Região Sul), que reúne amostras de fala representativas das variedades lingüísticas dos estados da região Sul do Brasil - Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
O banco é constituído de amostras de fala gravadas em fita cassete e em CD, e transcritas em material impresso, de habitantes nativos de 12 cidades da região Sul, 4 em cada estado, o que resulta em um acervo de 96 entrevistas por estado e 288 no total. Todas as entrevistas foram feitas em estilo não controlado e versam sobre a vida do habitante da cidade
Os informantes estão distribuídos por sexo, idade, nível de instrução e etnia. O Quadro 1 a seguir apresenta as cidades representadas no banco e os grupos étnicos culturalmente representativos de cada uma. É possível ao pesquisador acessar tais informações, bem como outras relativas à profissão, atividades sociais e de lazer, na ficha social de cada informante.

Quadro 1: Banco de Dados VARSUL - Regiões e Grupos Étnicos



A coleta dos dados referentes a tais localidades teve início em 1990 e deu-se até 1996. Após essa data, o banco foi acrescido ainda de outras amostras, referentes às localidades Ribeirão da Ilha (Florianópolis-SC; colonização açoriana) em 1996, São José do Norte-RS (colonização açoriana) em 2000, e Barra da Lagoa (Florianópolis-SC; colonização açoriana) em 2001, entre outras.
Outros bancos de dados no Brasil também disponíveis a pesquisadores podem ser citados. Para a descrição da variedade culta do português brasileiro, há o Projeto NURC (Norma Urbana Culta), que reúne dados de cinco capitais brasileiras - São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Recife - em três tipos de inquérito: (a) diálogo entre dois informantes, (b) elocução formal e (c) diálogo entre informante e documentador. Há ainda, entre outros, o Projeto PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), conhecido originalmente como Projeto Censo da Variação Língüística do Estado do Rio de Janeiro, com mais de vinte anos; o Projeto VALPB (Variação Lingüística da Paraíba), da UFPB (Universidade Federal da Paraíba); o Projeto BDS-Pampa (Banco de Dados Sociolingüísticos da Fronteira e da Campanha Sul-Rio-Grandense), da UFPEL (Universidade Federal de Pelotas) e UCPEL (Universidade Católica de Pelotas) e BDSer (Banco de Dados da Serra Gaúcha), da UCS (Universidade de Caxias do Sul).
Tanto no caso de se recorrer a um banco de dados como no de realizar uma coleta, é necessário que se realize uma espécie de seleção dos indivíduos que farão parte da pesquisa, já que é obviamente impossível, por questões práticas, utilizar todas as entrevistas de um banco de dados ou gravar a fala de todas as pessoas de uma dada região de interesse.
O método mais comum em estudos de variação lingüística para tal fim é o aleatório estratificado. De acordo com esse procedimento, deve-se dividir a população de interesse em várias unidades compostas, cada uma delas, de indivíduos com as mesmas características sociais (Oliveira e Silva, 1992, p. 104). Essas unidades são conhecidas como células e devem ser preenchidas de forma aleatória, o que significa dizer que cada membro da comunidade de interesse tem a mesma chance de ser escolhido para fazer parte da pesquisa. Esse procedimento oferece a possibilidade de que os resultados obtidos para esse pequeno número de membros possam ser projetados à comunidade de fala como um todo.
Embora nunca estejamos inteiramente seguros de que uma amostra apresente de fato as características da população de onde se origina, o uso de amostras aleatórias oferece ao pesquisador a segurança de que seu estudo não está se restringindo a dados provenientes da fala de indivíduos pertencentes a um único segmento social, o que invalidaria a extensão das inferências feitas com base nos valores obtidos para a amostra da comunidade alvo.
A composição completa da amostra só será atingida quando da decisão sobre o número de informantes que representarão a comunidade de interesse. A técnica de amostragem utilizada sugere que se realize a multiplicação do número total de fatores de cada um dos parâmetros sociais escolhidos, um pelo outro. Desse modo, no caso exemplificado, temos os seguintes fatores para as variáveis sociais:


O que resulta na multiplicação 2 x 2 x 2 = 8. O produto obtido é entendido como o número de células que serão preenchidas por indivíduos selecionados aleatoriamente na região delimitada como de interesse para a pesquisa. Nota-se que cada célula traz informações específicas sobre qual a faixa etária, o sexo e o nível de escolaridade que o informante deve apresentar para poder preenchê-la. O Quadro 2 a seguir apresenta as oito possibilidades que constituem a amostra da pesquisa sobre a palatalização do /S/. Pode-se localizar geograficamente a comunidade de interesse na cidade do Rio de Janeiro (RJ), de Recife (PE) ou ainda em Florianópolis (SC), todas caracteristicamente produtoras da pronúncia em exame.

Quadro 2: Composição das Células Sociais - A Palatalização de /S/


Delimitada a amostra, deve-se então refletir sobre o número de informantes que ocupará cada célula. A situação ideal é a de cinco informantes por célula, o que, no caso em exame, significaria uma amostra final composta de 40 informantes (8 células x 5 informantes em cada célula = 40 informantes).
O próximo passo então deve ser em direção ao campo, na busca pelos indivíduos que se encaixam nas células, e na realização das entrevistas. Na quarta etapa, o pesquisador dedicar-se-á à transcrição e codificação das ocorrências coletadas. Inicialmente, deve planejar um sistema de codificação. Para cada fator de cada variável independente lingüística e social é atribuído um único código. É aconselhável que este
seja escolhido mnemonicamente sempre que possível, a fim de que o trabalho posterior de codificação seja facilitado. Desse modo, se estamos buscando códigos para os fatores da variável Sexo, por exemplo, poderíamos atribuir m para masculino e f para feminino. Se a variável for Contexto Seguinte, seria conveniente que o fator coronal fosse representado pela letra c, labial por l e dorsal por d.
As entrevistas que compõem a amostra delimitada para a pesquisa são ouvidas e extraem-se desse material as ocorrências de interesse no contexto em que surgem na fala dos informantes gravados. O que realmente constitui o "contexto da ocorrência" irá depender do tipo de variável em exame. Se ela é fonológica, pode envolver uma ou algumas palavras, mas se for sintática, a frase inteira poderá ser extraída ou até mesmo todo o parágrafo. Essa questão está diretamente relacionada à delimitação do que o pesquisador considera que deve ser registrado em sua análise e o que deve ser deixado de lado, decisão esta guiada certamente por princípios lingüísticos de análise.
Extrair as ocorrências também implica, para os estudos fonológicos, em transcrevê-las foneticamente, o que exige do pesquisador, como condição essencial, bons conhecimentos fonéticos, principalmente com relação à percepção auditiva dos sons da fala e ao domínio de um alfabeto fonético (4).
Feito o levantamento das ocorrências de interesse para a pesquisa, parte-se para a codificação de cada uma delas. No Quadro 3 a seguir, tem-se um exemplo de ocorrência codificada considerando-se o estudo sobre a palatalização de /S/. Nota-se que a codificação possui seis caracteres, cada um deles representativo de um dos fatores que compõem cada uma das seis variáveis independentes sociais e lingüísticas propostas.

Quadro 3: Codificação de Ocorrência - Palatalização de /S/




O primeiro símbolo refere-se a uma das variantes da variável dependente. No caso em questão, a palatalização de /S/ é definida como uma variável dependente composta por quatro variantes, palato-alveolares (1), alveolares (2), apagamento (3) e aspiração (4), sendo a palato-alveolar exemplificada no Quadro 3. O segundo símbolo, "d" , indica que o contexto precedente ao /S/ é uma vogal dorsal. O símbolo "c" seguinte informa que o contexto seguinte ao /S/ é uma consoante coronal e o "m", que /S/ encontra-se em posição medial. Os três últimos símbolos referem-se às características sociais do falante: "f", sexo feminino; "x", com ensino médio incompleto e "5", com idade entre 20 e 50 anos.
Independentemente de a variável ser fonológica ou sintática, o trabalho de levantamento de ocorrências em entrevistas e sua codificação consomem, no geral, muito tempo e exigem o máximo de atenção do pesquisador, visto que erros recorrentes podem comprometer o resultado final da pesquisa. Desse modo, uma ou mais revisões se fazem necessárias.
A etapa cinco trata da quantificação dos dados. A medição do papel dos fatores lingüísticos e sociais no condicionamento da variável dependente deve contar com o estabelecimento de um índice quantitativo. Isto significa dizer que a cada um dos fatores estabelecidos na pesquisa deve ser atribuído um valor numérico. Como esses valores variam de um fator para outro, é necessário que o pesquisador disponha de um instrumento que o auxilie a extrair inferências. Os programas que compõem o pacote computacional VARBRUL 2S (5) realizam exatamente essa tarefa.
Finalmente, o pesquisador atinge a etapa de interpretação dos resultados, o que envolve compreender e explicar os resultados numéricos oferecidos pelo programa. É importante observar que os valores numéricos relacionados aos fatores não respondem diretamente às perguntas que motivaram a pesquisa, mas funcionam apenas como uma espécie de direção para se chegar até elas. A teoria lingüística e o conhecimento da estrutura social da comunidade em exame, condutores iniciais da formulação das hipóteses de pesquisa, entram novamente em cena nesta etapa e atuam de modo decisivo na justificativa das tendências apresentadas pelos resultados numéricos.


REFERÊNCIAS

BRESCANCINI, C. R. A palatalização da fricativa alveolar não-morfêmica em posição de coda no português de influência açoriana do município de Florianópolis: uma abordagem não-linear. 1996. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

____. A fricativa palato-alveolar e sua complexidade: uma regra variável. 2002. Tese (Doutorado em Letras) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

GRYNER, H.; MACEDO, A. A pronúncia do -S pós-vocálico na região de Cordeiro-RJ. In: LABOV, W. Sociolinguistic Pattern. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

MOLLICA, M. C.; MARTELOTTA, M. E. (Org.). Análises lingüísticas: a contribuição de Alzira Macedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 26-51.

MOLLICA, M. C.; MARTELOTTA, M. E. (Org.). Análises lingüísticas: a contribuição de Alzira Macedo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. p. 52-64.

OLIVEIRA E SILVA, G. M. Coleta de Dados. In: MOLLICA, M. C. Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro: Programa de Apoio à Produção de Material Didático (PROMADI 1)- UFRJ, 1992. p. 101-114. (Cadernos Didáticos UFRJ).

ROMAINE, S. Language in Society. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2000.

______; MACEDO, A V. T. Variação e mudança: o caso da pronúncia do s pós-vocálico. In:

TARALLO, F. A pesquisa sociolingüística. 2. ed. São Paulo: Ática, 1986.


Disponível em: www.pucrs.br/edipucrs/online/pesquisa/pesquisa/pesquisaem letras.html. Acesso em: 10 jun.2010

sábado, 2 de julho de 2011

SOM, COMUNICAÇÃO E LINGUAGEM

SOM, COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM:
RUDIMENTOS DE FONÊMICA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Lucirene da Silva Carvalho


1 INTRODUÇÃO


Todas as discussões em torno das quais gire a presumível superioridade da língua humana têm, como esteio, a dicotomia seguinte, de cujo cerne se buscam distinções: como separar homens de animais, se ambos (1) emitem sons e (2) comunicam?
De fato, os que se calcam meramente na emissão sonora, proveniente assim de humanos como de animais, não saberiam captar, de um cão, por exemplo, uma mensagem na qual aquele estivesse referindo-se a seu “estado de espírito” ontem ou, num prognóstico, amanhã, ou mesmo dali a alguns minutos, a despeito de supostas evidências que apontassem a uma certa conjuntura específica e inequívoca de dor. Se há, por via de regra, verbos que designam algumas sutilezas do “estado de espírito” canino - ladrar, ganir, uivar, latir etc. -, provindos, aliás, de um como que afã do homem em sistematizar emoções (mesmo dos seres irracionais), esses verbos, repetimos, malogram qualquer especificidade mais aprimorada do que algo referente ao mero momento em que o som, seja ele qual for, estiver sendo emitido pelo cão. Assim é que dizemos que aquele animal ladra de raiva, gane ou uiva de dor, late por inquietação, sem, contudo, podermos dizer que ladra por expressar uma raiva enrustida ou uiva para expressar antecipadamente uma saudade que julga sentir. Quem ousaria fazê-lo exceto por uma licença sobejamente poética?
E, assim como os cães, os outros animais, que não o homem, não respondem senão a estímulos externos que provoquem, naquele momento (este é um ponto primacial), a emissão de qualquer sinal comunicador.
Estando atrelada, como vemos, a fatores externos, resta claro que a capacidade - mesmo sonora, por assim dizer - dos animais seja demasiado limitada: compõem-se, esses animais, de uma muito reduzida gama de sinais que ou não se recombinam em prol de mensagens mais complexas, ou, se se recombinam - como comprovou eficazmente certas experiências com animais gregários, como abelhas -, não chegam a comunicar idéias muito intrincadas, e tampouco se referem a essas idéias em outro lugar que não o “aqui e agora”. Tudo isso, outrossim, pelo fato de os animais não poderem expressar ambigüidades, quer sejam estas intencionais (as heraclíticas, por exemplo), quer não o sejam.
É, pois, na possibilidade de emitir sons articulados e divisíveis, e, ainda, na capacidade de atribuir a esses sons significados exteriores que reside a diferença entre a linguagem humana e a comunicação animal, para, agora sim, sermos técnico no lidar com o assunto. Por isso, afirmamos com certa veemência que a linguagem estaria calcada na oralidade, sendo atributo exclusivamente humano, desde que, por oralidade, entender-se-á, de agora em diante, a faculdade inerente ao conjunto psicobiossocial de que se reveste o homem.
E, sem dúvida, reconhece-se, hoje, a linguagem como uma das faculdades de maior importância a que o homem por assim dizer recorre a fim de dirimir certas ânsias, quer o sejam boas, quer más. Haja vista, como se disse algures, o afã do homem em rotular emoções, ímpetos, sensações etc. com uma vestimenta fônico-gráfica - a palavra. Além disso, os estudos lingüísticos apontam-na (essa linguagem) como o grande vão que separa – cognitiva e comportamentalmente, queremos dizer – homens de outros animais, conforme mais ou menos satisfatoriamente ficou acima exposto. Sem contar que é a expressão de toda uma comunidade, modo com que um homem se agrega a outros; constituir-se-á, por esse meio, a necessidade de padronização dos "instrumentos" necessários à consubstanciação do entendimento de uma mensagem: eis um rudimento de definição da língua, pecando, ainda, por escassez de elementos.
Isto é: se é, de fato, muito difícil estabelecermos os primórdios da linguagem, sua gênese – e entendamo-la desde já como sobremaneira intrínseca ao homem -, não o é da mesma forma a conclusão de que esta "é uma faculdade imensamente antiga da espécie humana e deve ter precedido os elementos mais rudimentares da cultura material” (Sapir, 1954: 23). Não está à disposição dos lingüistas uma precisão quanto aos detalhes da origem da linguagem, até porque, transcendendo a gênese orgânica, que a origina, como vimos, uma língua há de sofrer sucessivas evoluções semânticas a fim de adequar-se às necessidades peremptórias dos povos que dela lançam mão.
Disso, tirar-se-á uma primeira conclusão, já tão claramente propagada por Saussure e seus discípulos: a função primordial de uma língua é transmitir mensagens, o que se dá graças a um complexo conjunto de sons arbitrariamente estipulados a fim de designarem coisas, quer sejam estas palpáveis ou não. E, em "Curso de Lingüística Geral", dá o mestre um claro caminho a ser seguido à luz do discernimento mais fino: "Evitando estéreis definições de termos, distinguimos primeiramente, no seio do fenômeno total que representa a linguagem, dois fatores: a língua e a fala. A língua é para nós a linguagem menos a fala. É o conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender "(CLG: 92).
Assim, para estabelecer-se a comunicação, é necessário que a uma dada coisa, proveniente do "mundo dos objetos" (cf. Cassirer), num primeiro patamar de detecção, seja atribuída uma chancela fônica, uma vestimenta sonora que a represente: eis o que se entende, grosso modo, por signo lingüístico, - a indissociação que se dá, na língua, entre o som que representa um objeto (mas lembremo-nos de que este não precisa ser empiricamente detectável), o que se denomina "significante", e a idéia extralingüística a que este objeto remete, ou o "significado".
Outras terminologias paralelas designam-nos, o significante e o significado, respectivamente como "estrutura" e "conteúdo", e (especificamente com os lingüistas mentalistas) como uma tripartição indissociável, em vez da bipartição acima aludida. Dentre tais mentalistas, citamos o triângulo de Ogden-Richards (PL: 114).


Referência (ou pensamento)




Símbolo lingüístico Referente
(significante) (realidade objetiva)

Aqui, referente e símbolos não se ligam entre si, mas encontram sua ligação graças à referência, sem cuja intervenção, pois, não se consolidariam os alicerces da mensagem. Assim, o segmento fônico (símbolo, significante, estrutura etc.) não teria por si só qualquer função descritiva de algo oriundo da realidade objetiva (mundo dos objetos, referente), se, entre um e outro não houvesse intervenção mental no sentido de estabelecer-se uma referência que lhes permitisse a associação.
Lembramos que Saussure refutou a terminologia "símbolo" como se fosse sinônimo de "significante", uma vez que, segundo ele, a idéia de símbolo estaria mais ligada à representação visual, não arbitrária, digamos, da coisa representada. É a razão por que se diria que a balança é o símbolo de eqüidade, uma vez que "não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro, por exemplo" (CLG: 82 ).
Dessa forma, se uma escrita tivesse de ser calcada primordialmente em símbolos, haveria de ser eminentemente ideogramática como, por exemplo, o foi o hebraico em seus primórdios (um pouco adiante falaremos sobre o conceito "ideograma" em face de outros importantes à elucidação que se propõe este trabalho).
Hodiernamente, a língua é, sem dúvida, um dos fundamentos sobre os quais se firma o gregarismo do homem, uma das pedras de toque graças às quais aquele se pode fazer expressar e, por conseguinte, compreender a expressão de outros seus semelhantes.
No entanto, indo um pouco além desse pressuposto, concordamos com Jakobson em seu clássico desmembramento das funções da linguagem em:

1) referencial calcada na idéia básica de Saussure de que uma língua é o resultado de necessidade de se exprimir objetivamente uma idéia preexistente;
2) conativa centrada na aptidão - e na inclinação - que um homem tem para convencer outros;
3) emotiva calcada no locutor da mensagem, com suas sutilezas afetivas e líricas;
4) poética preocupada com o próprio significante, em primeiro lugar; com a textura física da palavra no todo: o signo, ainda que, em última instância, em detrimento do significado; haja vista os jogos de palavra, trocadilhos, difundidos desde o tempo de Shakespeare ou Camões, em que o significado fica à mercê do prazer estético do espectador;
5) fática em que se estabelecem limites e protocolos de convívio social;
6) metalingüística em que conceitos – sobretudo os do próprio fazer literário lato sensu - são trazidos à baila.

Em parelha com essa visão, relevamos a de Bühler, pela qual a linguagem, ponto de cujo centro promana a língua (consubstanciada esta em fala), traz consigo os matizes provocados pelo usuário; a saber:

1) Apelo (al. Appell);
2) Representação (al. Darstellung);
3) Manifestação (al. Kundgabe).
O fato inegável – e inerente a todas essas filosofias supracitadas – é que a linguagem é a mais recôndita forma de manifestação psíquica do homem, e só a ele importa achar sutilezas com que possa, assim, melhor manifestar-se, campo de investigação da estilística, da análise textual, da pragmática etc.
Com dizer isso, chegamos à conclusão de que a escrita é menos importante – lingüisticamente (e não tememos padecer de radicalismo) – do que a fala: pessoas podem travar comunicação sem saber ler ou escrever. Além disso, a capacidade de aquisição de uma língua, já na infância, é uma das maiores diferenças entre o homem e os demais animais, assim orgânica como intelectivamente, cumpre assinalar.

"Todas as línguas – é importante enfatizar desde o início – têm conjuntos de sons distintos chamados fonemas; uns conjuntos são agrupados em seqüência chamadas morfemas (...); e os morfemas se encaixam em estruturas denominadas palavras, sintagmas e sentenças" (grifos nossos; traduzido e adaptado de "The ABC's of Language and Linguistics", de C. Hayes Ornstein e W. Gage).

E, aqui, chegou-se a nova diferença entre a linguagem humana e uma presumível "linguagem" animal, termo impróprio: embora esta última exista se considerarmos que os animais podem transmitir entre si certas mensagens, essa tal "linguagem", por meio da qual eles se comunicam, repitamos, não resistirá à mais rasteira investigação fonêmica (tampouco a uma morfológica) que tente depreender sons mínimos que, reagrupados, forneçam subsídios à estruturação de um conjunto ilimitado de sentenças.
Com efeito, o homem, ao utilizar uma língua, inconscientemente lança mão de seu sistema, de seu gênio, a fim de, embora dispondo de número limitado de sons, construir sentenças em que possa ilimitadamente expressar suas mensagens , bem como seus universos volitivo, cognitivo, expressivo.
Assim é que esbarramos com a importância do "reaproveitamento" de sons em uma língua – o que, reiteramos, difere o homem (portador de linguagem) dos outros animais. É a chamada "economia de uma língua "(cf. Antônio Houaiss: 12 ). "É o caso de perguntar" – diz Houaiss – “o porquê de tamanha 'economia': se podemos transmitir tantos e tantos sons e ruídos, que nos dariam milhões e milhões de sílabas, por que (se há uma explicação para isso) reduzimos tanto o nosso poder? Porque – parece claro –, se os podemos emitir, podemos, em contrapartida, confundir, e com isso comprometer o que queremos, a intercomunicação". E seria esta a razão precípua por que o homem, embora dispondo de um sem-número de sons, agrupa-os sistemática e limitadamente, para darmos cabo à discussão.
Daí a importância que se vem dando à possibilidade o homem compartimentar sua língua; possibilidade esta que, em última instância, dá-se graças ao estabelecimento da noção de fonema, segundo passo de nossa incursão.

2 CONCEITOS NECESSÁRIOS PARA A COMPREENSÃO DO ESTUDO

2.1 Fonema

Segmento sonoro mínimo que, soando simultaneamente como num feixe (ingl. Bundle) de traços distintivos (ingl. Features), dá a exatidão do significado de uma certa forma lingüística se comparada a outras formas que não possuam aquele fonema ou, em seu lugar, possuam outro.
É assim que se estabelece a diferença semântica entre: Vala, ala, fala, tala, rala, sala etc.
Este traço distintivo – isto é, a oposição a outras formas na língua – é o que caracteriza o fonema, separando-o do conceito de som da fala, que é o que, em certa língua pôde ter sido estabelecido, - por razões etimológicas, sociais etc. – como os sons pertinentes aos falantes daquela língua específica. Por exemplo, seria uma análise fonética (de sons da fala):
1- Em alemão, o ch após a vogal ganha uma articulação inexistente em português, e, por isso, de difícil reprodução fonética aí: a língua levanta até tocar os alvéolos e é emitida uma corrente de ar que encontra, na língua levantada, seu maior obstáculo, obrigando o ar a encontrar a saída pelas partes laterais; assim, do ponto de vista auditivo, esse ch soará – o que é próprio do alemão, reiteramos – meio chiante, meio sibilante. Ex: sprechen.
2- Em francês, o u, é pronunciado com os lábios quase inteiramente fechados e arredondados, dando-lhe, no português, uma similaridade com o i (em alemão, por exemplo, o som que se aproxima muito deste u francês é o u com trema, ou melhor, com Umlaut – ü). Francês – fluer (fluir)/ Alemão - begründen (fundar)
3- Em inglês, o th, resultado do q (theta) grego, é emitido com o levantamento da língua até os dentes frontais da arcada superior (posição linguodental), e a corrente de ar encontra, em tal posição da língua, seu maior obstáculo.
Thin – (magro).
Todo esse estudo, sobretudo comparativo, está restrito ao estudo dos sons da fala (das várias línguas, como vimos), e interessa mais propriamente à fonética do que à fonêmica.
É interessante sabermos que o estudo fonético, até o que se restringe ao dos sons da fala, pode ter como alvo a delimitação dos significados dos vocábulos de uma certa língua. Tal abrangência se demonstra, por exemplo, quando se ultrapassa o âmbito meramente articulatório/auditivo de um certo fonema em uma certa língua - isto é, a sua correta pronúncia -, chegando-se às distinções que seriam causadas se aquele fonema não fosse articulado (e ouvido) da maneira exata como se especificou no estudo fonético.
Vale o exemplo de Mattoso: It's thin.
Pelo estudo fonético, chegou-se àquela conclusão quanto à correta articulação do th em Inglês (ver item 3 acima); isto seria, em princípio, uma preocupação fonética, nunca é demais a insistência.
Entretanto, se, neste caso particular, articula-se o th de outra forma, este representará novo(s) fonema(s), e, pois, nova(s) significação(ões).
A tendência do falante é, caso o fonema em questão não exista em sua língua, como ocorre com o th inglês, emiti-lo da forma mais próxima de um fonema aí existente. Assim é que o th, para um falante de língua portuguesa, só para darmos um exemplo, soaria ora como s, ora como t, dificilmente como theta: It's sin (pecado) /It's tin (lata) -, o que sairá, como falamos, do mero estudo fonético, não tão preocupado com o traço distintivo que caracteriza o fonema, pois que percebemos que cada palavra, em função de um fonema específico, terá uma significação própria, o que perfaz as fronteiras da fonêmica.
De tudo isso, depreende-se a excelente conceituação de Jakobson:
"O fonema é próprio som, mas interpretado na sua função diferenciadora e não na sua execução [o problema da execução está no âmbito das investigações do som da fala]" (PEFP: 130).

Por serem em número limitado, os fonemas se dispõem num paradigma - o SISTEMA FONÊMICO - de grupos 1) opositivos (ex: em português /t/:/d/, em que há oposição quanto à ausência ou presença de sonoridade) ou, ainda, 2) associativos (ex; em português /t/-/d/ pela coincidência de articulação linguodental).
Em parelha com esses conceitos, convém estudar-se, outrossim, alguns outros, que, ora restritos ao campo fonético-fonológico, passaremos a apresentar:
2.1.1) Sincronia: designa a simultaneidade dos fatos de uma língua num dado momento da História - o ESTADO LINGÜÍSTICO. Tal estado é apresentado segundo um parâmetro de análise em que sobressai um conjunto de correlações e oposições (q.v. exemplo acima).

2.1.2) Diacronia: designa a transmissão de uma língua através dos tempos, o que acarreta mudanças evolutivas que, por seu turno, descortinam estados lingüísticos diversos, se analisados, então, sob o ponto de vista sincrônico, em cujo interesse reside mais propriamente o perfilamento daqueles fatos estanques.
Enquanto a sincronia se preocupa sobremaneira com a descrição de um determinado momento da língua, deduzindo, deste, os fatos concomitantemente ocorrentes, a diacronia estuda a língua desde seus primórdios até nossos dias, preocupando-se antes com os princípios que a induziram às transformações dos tais estados lingüísticos.
Na língua portuguesa, divide-se convencionalmente a História em cinco grandes PERÍODOS ou FASES:
1)Latim vulgar imperial - até séc. IV
2)Romanço-lusitânico - séc. IV a séc. IX
3)Protoportuguês - séc. X a séc. XI
4)Português arcaico - séc. XII a séc. XV
5)Português moderno - séc. XVI em diante.

Tais fases, repetimos, não correspondem stricto sensu às transformações dos estados lingüísticos, que têm, embora atrelados naturalmente ao domínio da investigação diacrônica, maiores afinidades com o estudo sincrônico, de onde, isto sim, decorrem.

3 COMUTAÇÃO

O método que vimos acima é que permite detectar a existência de um fonema, uma vez que, sendo este substituído, chegar-se-à a um novo significado. Recebe o nome de comutação; aliás, método de comprovada eficácia em outros planos da gramática estruturalista, como na morfologia, na sintaxe e na própria semântica.
a) Cala/cola
b) Sujo/sugo/suco
Deixamos claro que o estudo fonético, diferentemente do que pode ter sido depreendido do quanto até aqui ficou exposto, tem como objeto principal a coleção do "material sonoro bruto" (cf. Jakobson, FF: 105) dentro de uma língua. Assim, a par de estabelecer investigação no plano universal, a fonética é voltada, igualmente, ao plano histórico (isto é , uma dada língua), retirando de seus falantes a maior gama possível, à exaustão, de matizes sonoros que esses possam emitir, o que, como veremos, aproxima a investigação em tela do estudo das variantes fonéticas ou alofones.

4 ALOFONE

Alofone é, em sentido estrito, a variante ou variação correspondente aos fonemas.
Tal variante pode ser:
4.1 Variante Livre: se depende exclusivamente dos traços articulatórios dos falantes da língua, sem ter imiscuída em si uma intenção de apelo ou expressividade.Tal variante faz depreender a possibilidade de uma mesma língua, embora apresentando - obviamente - comunidade de códigos, léxico etc., ter, não obstante, significativas variações diatópicas e diastráticas, isto é, mudanças atinentes ao lugar e ao nível social de onde são oriundos os falantes em questão. O Professor Mattoso nos dá o exemplo da articulação africada (consoante oclusiva com repentino aparecimento, na parte final, de uma constritiva) em certos falares.
c) Tia - /tchia/ (obs. como chair do inglês)

Tal articulação constitui, ao contrário do que poderia parecer, apenas um fonema, pois, dos pontos de vista fonêmico (ou fonológico ou fonemático) e fonético, equivale a um segmento indivisível.
Por fim, quanto à variante fonética livre (e, mais especificamente quanto ao exemplo sugerido), o Professor Mattoso adverte que, apesar de obviamente palatalizada, tal pronúncia, recorrente na cidade do Rio de Janeiro, não deve ser encarada como um fenômeno de palatalização, o que pertence ao âmbito, como veremos, da Gramática Histórica ou, segundo Saussure, Diacrônica.
4.2 Variante Estilística: quando a variante, ou melhor, a articulação se dá em função de uma série de traços excepcionais advindos de intenções psíquicas de apelo. Ainda aproveitando o vocábulo “tia”, Mattoso ensina que seria o caso de, ora, esta ser falada com um “i” prolongado, indicativo quer de surpresa, quer de carinho.

OBSERVAÇÃO: Quando um alofone tem a propriedade de anular a distinção entre dois ou mais fonemas, diz-se ter havido NEUTRALIZAÇÃO, e o fonema resultante, por assim dizer, chama-se ARQUIFONEMA, que pode:
1)corresponder a um dos fonemas (“fonema vencedor?”) ou 2) ser uma espécie de “denominador comum de todos eles[os fonemas anteriores]”(Mattoso). E exemplifica mais uma vez com a seguinte tela: pus, luz, flux - todos pronunciados [s’]
Em outro caso de alofone, deparamo-nos com o DEBORDAMENTO, em que haverá emprego facultativo de um fonema por outro em certa forma da língua, como em: /e:/ por /i/ ou /o:/ por /u/, quando pretônicos; são os casos de: academia - /akadímia/ ou /akademía/ corista - /kúrista/ ou /korísta/

5 FONÉTICA

Quanto ao plano universal, entendamos a fonética como a depreensão dos sons da fala humana em seus aspectos:
1- Físico;
2- Fisiológico
Isso gera uma tripartição em:

1-Fonética Articulatória (ou motriz);
2-Fonética Acústica;
3-Fonética Perceptual (ou auditiva)
Quanto ao plano histórico, parece-nos claro que a fonética há de levar em conta mesmo as mínimas variantes fonéticas, ainda que tais variantes não cheguem a afetar a compreensão de uma forma lingüística, não chegado, pois, ao campo da fonêmica. No mais, vale ressaltar como parte da investigação fonética (ou como estudos ancilares desta), por exemplo:
1-O papel das cordas vocais.
2-O modo de articulação.
3-O ponto de articulação.
4-As caixas de ressonância.
5-As articulações secundárias.

6 FONÉTICA E FONÊMICA

A partir da criação do termo fonema, em fins do séc. XIX (Baudoin de Courtenay, Rússia), os lingüistas passaram a se preocupar com a oposição lingüística que, como vimos, caracteriza-o. Isto é: se, do ponto de vista fonético – que era o que norteava os estudos relativos ao som –, encaram-se estes sons por critérios físicos e fisiológicos, a fonêmica introduziu uma investigação voltada para as mudanças de significado que a substituição de um fonema por outro ocasiona. Tudo isso tendo em vista a "economia de uma língua".
Pode-se afirmar, então, que, para os lingüistas, a partir do advento dos estudos fonêmicos (e do conceito de fonema), o importante é o que se "consegue" lingüisticamente (o que se comunica) quando se substitui um som por outro (um fonema por outro), e não a forma como este som é, por uma série de movimentos articulatórios, emitido (e captado).
“Es, pues, base esencial para la diferenciación entre sonydos e fonemas”(ensina Tomás Navarro. - Apud Rocha Lima: 13) “el efecto que los cambio fonéticos ejercem sobre el valor semántico de las palabras. Las modificaciones de articulación y sonoridad que la n, por ejemplo, experimenta en confuso, encima, y cinco, son sonidos de um mismo fonema.”
Por conclusão, vê-se que a fonêmica não se preocupará com os diversos matizes (quer sejam diafásicos, diastráticos, diatópicos) que se possam dar a um mesmo fonema: uma vez que haja a identidade daquele significado graças à presença do fonema que ali está, não importam tanto as variações (alofones) que porventura tenham ocorrido.
É o caso de "tio", que, no Rio de Janeiro será falado como "tchio" (pronúncia africada), enquanto no sul do país será mantida a "secura" do fonema /t/ (pronúncia dental firme), sem que, com tal variação, ocorra diferença de significado entre o vocábulo "tio", quer seja pronunciado de um jeito, quer de outro.
Daí, inferir-se: a análise fonética está voltada para a articulação, tanto física quanto fisiologicamente. A análise fonêmica busca a distinção funcional de sons, o que faz que, por substituição de fonemas, chegue-se a significados distintos.
Podemos dar outro passo.

7 FONEMAS / LETRAS / IDEOGRAMAS / GRAFEMAS

Já concluímos que os fonemas são do âmbito de estudos (fonético e fonêmico) preocupados com o som, não com a escrita, e que este som pode ser analisado física e fisiologicamente (fonética) ou em sua abrangência de significados (fonêmica) .
Cumpre levantar, contudo, novo conceito aí: o estudo que, de fato, preocupa-se com o comportamento dos fonemas é a fonêmica (/vala/x/fala/ fonemas/v/e/f/ criando significados diferentes). A fonética está voltada para os sons da fala (lingüisticamente, os fones). Cumpre, por fim, relembrar que a fonética pode depreender um fone por critérios acústicos, articulatórios ou auditivos.
• Acústico – propagação de ondas sonoras no ar.
• Articulatório – desempenho dos órgãos do aparelho fonador.
• Auditivo – impressão causada ao aparelho auditivo do ouvinte.
Assim é que se pode dizer que, do ponto de vista articulatório, /p/ é oclusiva; auditivamente é plosiva. Do ponto de vista articulatório /s/ é constritiva; auditivamente é fricativa (as subdivisões das constritivas parecem na NGB ter seguido critério auditivo, o que teria sido um lapso dos eminentes professores que a compuseram) e sibilante ao contrário de /x/ e /j/ (que são chiantes) etc.
Letra é, por seu turno, o sinal gráfico empregado, na escrita, para representar o sistema sonoro complexo de uma língua. São – como quer Mattoso (DFG, 244) – "sinais gráficos elementares com que se constroem na língua escrita os vocábulos, da mesma sorte que os vocábulos da língua oral se constituem de fonemas".
Há diversas formas de se provar a distinção entre letra e fonema. Eis algumas:
1) a mesma letra indicando, em ambientes fonéticos distintos (ou não), fonemas diferentes :
a) ambiente fonético distinto – balsa (entre consoante e vogal)/ casa (entre vogal e vogal)
b) mesmo ambiente fonético – México (entre duas vogais)/ léxico (entre duas vogais)
2) O mesmo fonema podendo ser indicado por mais de uma letra : xícara /chácara
3) Várias letras indicando um fonema (dígrafo)
a) dígrafo consonantal – chuva
b) dígrafo vocálico – santa
4) Letras que não são pronunciadas (mas que têm , em geral , função diacrítica – geralmente de timbre).
• Ah ! Oh ! (o /á/ e o /ó/, graças à letra h serão de timbre aberto ) .
• Homem / helicóptero

8 LETRA DIACRÍTICA

O ditongo "ou" é pronunciado em certas regiões como /ô/: Roubo /rôbU/ Roubou / rôbô/
M e N têm função meramente diacrítica se após vogal e antes de consoante (simultaneamente) – santo, senta, campo – não sendo, pois, um fonema isolado, mas, sim, um arquifonema nasal, uma vez que, como vimos, fará a nasalação de vogal que o precede. Adotaremos o critério de representação fonológica de todo arquifonema com letra maiúscula; assim é que teremos: campo /kaNpU/ ; santo /saNtU/; senta /seNta/. Observe que, quando dígrafos vocálicos (donde resultam arquifonemas nasais), M e N não podem de per si ser analisados como fonemas: em "santo", por exemplo, tem-se quatro fonemas (de aí alguns autores representarem o "a" nasal – graças ao "n" – com um til, para fazer coincidir o número de fonemas com o número de letras de transcrição fonológica – o que não nos parece certo, uma vez que a transcrição é, repitamos, fonológica, e não fonética; pelo que não adotarmos /sãtu/). Apesar de não constituírem fonemas independentes M e N têm função fonêmica, não apenas fonética, uma vez que cria distinção de significado; faça-se a comutação: CAMPO X CAPO /SENTA X SETA
É interessante observarmos que, embora a letra diacrítica, a rigor, possua sua característica individual como fonema, se à palavra forem adicionados certos morfemas, poderá, aquela letra, voltar a revestir-se da particularidade de ser um fonema próprio.
Assim é que, exemplificamos:
Occam /okaN/ (um dos precursores da teoria escolástica): arquifonema /N/ Occamismo / okamismo/ Fonema /m/. Aqui, o sufixo "restabeleceu" o status de fonema ao que, em outra situação, restringa-se a arquifonema.
A noção de ideograma, em primeira instância contrária à língua portuguesa, é a que preconiza que o sinal gráfico (do âmbito da escrita) possa reproduzir integralmente um dado radical (semantema).
Na evolução dos alfabetos, é sabido que as primeiras letras eram ideogramas: o aleph (boi) hebraico era o desenho de um boi; evoluiu para o alpha grego (com desenho semelhante àquele acalentado no alfabeto hebraico) , chegando ao a latino .
No período pseudo-etimológico da ortografia (do Renascimento até os primeiros anos do séc. XX), alguns autores alegavam que "lágrima" se devesse escrever com "y" (lagryma), pois tal letra (y) era mais expressiva neste vocábulo, porquanto mostraria com certa fidedignidade o desenho que uma lágrima faz ao contornar o pescoço daquele que a derramou (nota que nos foi fornecida por Evanildo Bechara). Aí, o y acumularia a função de um ideograma, posto trazer, como queriam os que lutavam por ela, o significado visualmente apreendido daquilo que representava, o que enriqueceria expressivamente, alegava-se, o significado da palavra.
Os grafemas são símbolos gráficos, como as letras, e que, no entanto, têm como objetivo que se debelem certas confusões propiciadas por palavras de significados diferentes e que possuam, embora, exatamente os mesmos fonemas. Assim, os grafemas surgem para que, na escrita, e, pois, visualmente, possam ser distinguidas palavras com significados distintos (homófonas/homônimas). Não se deve confundir tal conceito com o de clareza gráfica, ou mesmo certas distinções morfológicas (caso este em que se inserem “tem” e “têm”, por exemplo): Massa x maça . Na língua oral, não seria possível distinguir-se um vocábulo de outro; na língua escrita – graças ao grafema – tal distinção é possível.
Outros exemplos: Cerrar x serrar / Cessão x sessão x seção/ Inserto x incerto

9 RIMA

A respeito da "visualização" da palavra como subsídio insubstituível a fim de melhor apreender-lhe, quer o significado (como ocorre com os grafemas), quer a ligação expressiva que esta palavra possa ter com outras de um texto (geralmente um poema), sobre este último caso, relevamos a importância das discussões acerca da rima imperfeita. Ocorre que, na tradição poética brasileira, é comum que sejam obedecidas a pronúncia e as variantes fonéticas , quando do fenômeno de rima .
Assim, Casimiro de Abreu (PEFP, 86), ao rimar "nus" com "azuis", leva em conta um "i" epentético da pronúncia usual de "nus" (y/nuiz/= /azuis/), sem o qual a rima se tornaria sobremaneira artificial. Em termos de um mesmo "i" epentético proferido no final de sílaba travada pela consoante "s", temos, em Castro Alves (apud ob. cit., id.), a rima de "espirais" com “satanás”.
É de se estranhar que o professor Rocha Lima não tenha interpretado as palavras de Manuel Bandeira, ao dizer, este último, que "aposto, rosto; melhores, flores; bela, estrela" são "rimas quase só para os olhos". (Manuel Bandeira, in “Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica” – apud Rocha Lima: 540). Contra essa afirmação, rebate linhas abaixo o grande professor: "Ao contrário, ‘a rima é só para o ouvido’”.
Achamos que, aí, o professor levou em consideração, de fato, as rimas que se calcam na pronúncia, nas variantes fonéticas (como azuis, nus; espirais, satanás). No entanto, os exemplos de Manuel Bandeira são, na verdade, rimas mais bem "percebidas", de fato, "pelos olhos" do que "pelos ouvidos", em função da rima entre vogais de timbres diferentes (aberto, fechado, reduzido), embora comuns em nossos poetas, serem de certa forma desconcertantes a quem apenas escuta o poema, sem tê-lo diante dos olhos.
Há rimas para os ouvidos (levando em conta as mínimas variantes fonéticas). Há rimas para os olhos (que, à moda do que ocorre com grafemas, não víssemos a escrita, poderíamos não acatá-la como na rima de fato).
Quanto à questão da letra indicando som ou imagem, vale a citação de Câmara. Jr.:
Ao lado da grafia, que é a base da língua escrita, existe nos estudos lingüísticos a chamada transcrição fonética, que é um recurso para fixar visualmente as realidades da língua oral. Aí, a letra corresponde rigorosamente a um fonema ou a uma variante do fonema [com este último caso, a transcrição fonológica não está, grosso modo, muito preocupada], ao passo que na grafia usual, mesmo a que mais se cinge ao sistema de fonemas, a letra é antes um grafema. (DFG: 200).


10 APARELHO FONADOR

Do ponto de vista fisiológico, os fones (som da fala como vimos) resultam da ação de certos órgãos sobre a corrente de ar proveniente dos pulmões. Depende-se assim, para que se produzam os sons, de:
1- corrente de ar;
2- obstáculo maior ou menor encontrado por essa corrente;
3- caixa de ressonância (faringe, fossas nasais e boca).
Tais condições, proporcionadoras da articulação, são criadas pelos órgãos de fala, que, em conjunto, formam o Aparelho Fonador.
Este aparelho é constituído por:
1- pulmões, brônquios e traquéia (fornecedores da corrente de ar);
2- laringe (onde estão as cordas vocais);
3- cavidades supralaríngeas (faringe, boca e fossas nasais), funcionam como caixa de ressonância.
É oportuna a lição dos mestres Celso Cunha e Lindley Cintra:
Quase todos os sons de nossa fala são produzidos na expiração. A inspiração normalmente funciona para nós como um instante de silêncio, um momento de pausa na elocução. Línguas há, porém, como o hotentote, o zulu, o boximane e outros idiomas africanos, que apresentam uma série de consoantes articuladas na inspiração, os ruídos que se denominam CLIQUES. Em português praticamos alguns CLIQUES, mas sem valor fonético [nós diríamos sem valor fonêmico]: o beijo, que é uma bilabial inspiratória; o muxoxo, um clique linguoalveolar; o o estalido linguodental com que animamos o andar das cavalgadas; e uns poucos mais. Sobre o assunto consulte-se Rodrigo de Sá Nogueira, “Temas de lingüística banta: dos cliques em geral”, Lisboa, Agência Geral Ultramar, 1957. (NGPC: 26)

E é pelo exposto que se chega à raiz da consubstanciação de uma língua: ao lado das necessidades psíquicas, o homem, dotado de características orgânicas que o permitiram, pôde constituir um sistema de sons mentalmente dispostos e propulsores de uma infinita gama de termos.
Por toda essa complexidade inerente à constituição de uma língua, o homem tende a acatá-la invariavelmente, ainda que o caráter arbitrário que reveste qualquer uma possa, muita vez, acarretar ineficácia quanto à maneira ideal como aquele homem poderia querer manifestar-se. É a esse respeito que discorre Saussure quando diz que: "(...) situada, simultaneamente, na camada social e no tempo, ninguém lhe pode alterar nada e, de outro lado, a arbitrariedade de seus signos implica, teoricamente, a liberdade de estabelecer não importa que relação entre a matéria fônica e a idéia". (CLG: 90)
Voltando a uma idéia prescrita no princípio deste trabalho, ratificamos que as adequações semânticas de uma língua se dão à medida que seus falantes forem tendo tais e tais necessidades. Esta seria a razão, por exemplo, por que o inglês disporia de palavras relacionadas à tecnologia em muito maior profusão do que as relacionadas à agricultura. Isso quer dizer que muitas palavras e expressões não são encontradas em certa língua, embora possam sê-lo em outra. É por isso que, não raro, certa língua tenha de lançar mão de longas paráfrases a fim de designar o que, em outra língua, é refletido por um único termo. Bally (Linguistique Générale et Linguistique Française, Berna, 1950: 149) deu a tal especificidade de uma língua em face de outra o nome de "portemanteau" (literalmente "cabide") traduzido como "comutação". Em "Princípios de lingüística geral", Mattoso dá os exemplos (retirados da obra de Bally supracitado): "o alemão schimmel se traduz necessariamente por "cavalo branco" e o inglês to starve por "morrer de fome" (...) no latim am-o a final exprime as idéias de primeira pessoa, do singular, do presente, do indicativo, da voz ativa”.( PLG: 110 ). O mesmo pode ocorrer, ressaltamos, seguindo o mesmo sentido, mas direção oposta, ao dizermos em português certas palavras (sobretudo adjetivos) que requeiram, a fim de serem traduzidos, paráfrases (cf. e.g.: “grave”, “famigerado” etc.); ou os superlativos sintéticos se levados a línguas que em princípio os não acatem (“boníssimo”).
Assim, em princípio, o povo tem de adaptar-se cultural e lingüisticamente às mudanças. É com citação de Mattoso (DFG: 130) que vem à luz estes conceitos: "As línguas são produtos da cultura para permitir a comunicação social. As mudanças na cultura determinam mudanças lingüísticas, principalmente no que se refere às categorias gramaticais e ao léxico, doando uma relação estreita entre o estudo histórico da semântica e o da história da cultura".
Na "Poética", Aristóteles já alertava quanto à necessidade de se conhecer uma cultura a fim de entender-lhes as palavras inerentes; "(...) a propósito de Dólon [Homero, Ilíada, X] ele era de aspecto disforme, deve entender-se não que ele tinha um corpo desproporcionado, mas apenas um rosto feio, pois os cretenses exprimem por  (de belo aspecto) a beleza de rosto". (AP: 284).
Um dos maiores preconceitos que fazem que se julgue uma língua superior a outra é o fato de achar-se que o desenvolvimento econômico simplificaria o desenvolvimento lingüístico. Já vimos que isto não é verdade: o que o corre é uma adaptação cultural (e, pois, lingüística) à realidade vigente numa sociedade num dado momento. E, acima de todos esses pequenos matizes, dessas mudanças, citemos novamente a capacidade inauferível do homem de estabelecer comunicação por meio da linguagem, - com maior eficiência graças à fala.
Quanto à fala - ou "falar concreto", na terminologia de Coseriu -, havemos de relevar-lhe a supremacia, do ponto de vista lingüístico, em face da escrita. O fato é que, sabidamente, os afásicos encontram muito maior dificuldade de convívio do que os analfabetos. Esse fato se dá exatamente por o homem ter de concentrar seu intento, quando da tentativa de comunicar-se, sobretudo naquela organização de sons a que tanto aludimos (tendo como estribo o fonema), ainda que este homem, analfabeto, não tenha conhecimento do sinal gráfico que representa, na escrita, aquele som, - a letra.
Assim, chegamos, aqui, à idéia de que, ao lado de "comunicação animal", devemos colocar, tecnicamente, "linguagem humana", se nos quisermos situar no âmbito da língua ou da fala.